CAPÍTULO 03: CEO de MEI

Ulisses Lopes
6 min readFeb 28, 2023

Dada a necessidade proletária de não morrer de fome e ter um teto sobre os cachos, adentrei a modalidade profissional com o debochado nome de Micro Empreendedor Individual, o famoso desempregado gourmet, e logo surgiram figuras de arrojo social invejável que sempre trazem a dúvida se a falta de bom senso é uma variante da coragem o que também cabe a mim, pois fui me aventurar nessas aventuras e aceitei o “desafio” de me submeter ao lado obscuro da mentalidade humana empreendedora:

Então, havia me submetido a fazer Lanceiro Livre (Freelancer em inglês) interno em uma empresa pois preciso colocar o MEI pra funcionar e após 8 meses implantando projectos mil e fazendo certa micro-empresa triplicar suas frentes de ação com menos custos, tive a vã ilusão que o casal de directores estariam deveras gratos com minhas ações, mas a gratidão não vinha em forma de apreço monetário ou pelo menos uma trufa caseira de R$ 2,00 mas sim em forma de escárnio disfarçado de responsabilidades novas não remuneradas que chamam de “desafio” nas reuniões e quando um dos dois únicos vendedores entrou de férias por ser CLT, eis que o director aparece-me na sexta, último dia da lida do vendedor antes do merecido descanso, e me propõe sabendo que sou PJotista gourmet:

- Então, o Fulanelson sai de férias hoje, sabe, e só volta daqui 15 dias e eu queria saber se você poderia cobrir ele!

Já olho estranho para o emissor da frase porque está faltando lógica nessa afirmação e como não consigo disfarçar a estranheza, fazendo uma das sobrancelhas se destacar ao alto, tento simular pseudo-inocência:
- Então Seu Explorador injustiçado, eu sou o Designer, quer que eu cubra o horário do Vendedor?

- Isso mesmo! É bem fácil, você vai pegar o jeito rápido!

- Mas o Fulanelson é o vendedor 2, o vendedor 1 é o teu filho bebê de Júpiter, ele não pode mais vender?

- É melhor você… não precisa se preocupar, basta entrar uma hora antes, sair uma hora depois e assim nenhuma venda vai ser perdida

- E eu vou receber a mesma comissão do vendedor Fulanelson por essas 2 semanas e e ganhar o relativo a essas 2 horas adicionais por dia?

Aí é a vez do Explorador Injustiçado levantar as pestanas:
- Nãooo, você estaria só ajudando enquanto o Fulanelson não volta, sabe?

Aí eu tento pela última vez mostrar a inviabilidade lógica da proposta dele com a minha situação particular, que ele conhece muito bem:
- O Sr. quer que eu entre mais cedo, saia mais tarde, pra cobrir o vendedor, de graça e atrapalhando meus Freelas que faço em casa de noite, ao invés de colocar teu bebê de Júpiter que é o vendedor 1?

- Isso, isso mesmo, só isso, por 2 semanas, passa rápido!

- Olha Sr. vai ser impossível, só vai me dar prejuízo a troco de nada…

Aí o cenho do velho franze, ele puxa um catarro das gônadas e diz:
- Tá bom então, não pode ajudar, né? — Tá bom então!

Saiu pisando duro e não falou mais comigo até o fim do dia, não respondeu ao meu “bom findissemana” ao findar do expediente e segunda — feira aparecem duas figuras mitológicas do mundo corporativo para cobrir as férias do vendedor 2: o bebê de Júpiter e o director, numa segunda feira, as 09:00, algo inédito!

A minha vontade era dizer “estão atrasados, o Fulanelson entra as 08:00” mas nada como umas 2 semanas fazendo Cosplay de proletário para ensinar humildade a quem mais precisa.

CAPÍTULO 04: O ADVOGADO DAS FRAÇÕES

Chegou outro fim de semana e sábado é dia de beber até criar falsas promessas de parar de beber e para valorizar a ressaca de domingo marcamos um churrasco no meio do verão, nada mais refrescante que carne assada no afável e brando calor paulistano, então resolvi preparar uma beberagem refrescante para meus consagrados se arrependerem no dia seguinte.

Estava eu belo e formoso (sic) indo comprar cachaça e limão para castigar meu fígado com meus amados convivas que me aguardavam no local do evento e enquanto dirigia meu roliço corpanzil para o caixa, feliz da vida porque só havia um bípede na minha frente enquanto nos outros caixas estavam com mais gente, percebi que havia um entrave no processo.

No caixa a menina repetia como um mantra:
- Mai num pode, moço!

Comecei a prestar atenção e ouvi o argumento do cliente safardanas:

- Se a lata de cerveja é 2,50 e o engradado com 20 latas (ou algo assim) é 36, então cada lata é menos de 2,50 não concorda?

- Mai num pode abrir o engradado, moço

- Se a lata avulsa é 2,50 então eu posso abrir um fardo de 20 e você divide o valor total por 20 e teremos o valor de cada latinha

- Mai num pode, moço!

- Chama teu gerente!

- Pois não, Sr? O Gerente brotou do chão, certamente estava de Sniper da situação.

- Tá na lei que eu não sou obrigado a levar uma quantidade de produtos além do que preciso, pois configura no código de defesa do consumidor bla bla bla whiskas sachê sabor cordeiro defumado do Direito!

- É para isso que dispomos as unidades avulsas, para cada cliente levar quantas quiser, e caso deseje o fardo com tantas unidades, recebe um pequeno desconto de incentivo. Mais alguma dúvida?

- Mas é que no Direito…

- MAIS ALGUMA DÚVIDA??

Em um tom super alto e interrompendo o suposto primeiro anista de Direito. No final ele acabou levando o fardo, acho que ele só queria passar vergonha em público…

CAPÍTULO 05: TORCEDOR DE CORAÇÃO.

Estava meu ser metafísico desfrutando do espaço-tempo dentro de um ônibus coletivo municipal direcionado ao terminal Pirituba, a Paris de São Paulo, como de hábito sentado no banco do Pica-Pau (o último do meio, no corredor) e quando estava quase chegando ao meu destino final para desfrutar do tão aguardado churrasco, esperando que assem a carne e não sirvam sashimi de boi, eis que surge, como uma Medéia, um gemido grego a lá Antônio Abujamra de uma nobre idosa que lamentava, junto a outra enquanto narrava com as devidas emoções as agruras do dia-a-dia dos seres etéreos do bom senso.

- Ai Creusa, você num sabe, o “beim” quase bateu as botas onti, pur causa du Curintcha! Ele já tem pobrema dus coração, daí ele disse qui tava preucupadu com as nova contrataçãum du timi. Passô mal e tivi qui levá ele no’spital.

- TÁ’MARRADO! Exaltou-se a conviva que pela interjeição, parece ser vaqueira. — Mas pra quê tanto fricote pelo curintcha? Um ístimo de bom senso para iluminar a situação.

- Ele já tem pressãm alta, fica sofrenu pelo timi, é a quarta vez, já…

Neste momento o tempo parou para mim, as cores sumiram e ecoou em minha mente torporizada pelo absurdo:
- É A QUARTA VEZ, JÁ… É A QUARTA VEZ… QUARTA VEZ… QUARTA… quarta…

O ânimo foi-se, o derrame parou na ponta de derramar, sorte que o próximo ponto era o meu, mas fiquei pesaroso em lembrar que pessoas assim votam obrigatoriamente.

Nem preciso dizer que o churrasco me deu azia.

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Ulisses Lopes

Quando a necessidade de ler se torna a necessidade de escrever, eu escrevo. Por mim mas para os outros.